Escrutínio à fé de um agnóstico <br> no limiar do século XXI
O galo eloquente já canta dentro do ovo
(Provérbio afegão)
A época que vivemos é propícia a uma simplificação ideológica em que autores consagrados pelos media dão o mote, ao serviço da causa dos que detêm o poder económico, político, informativo e ideológico. O estado das coisas deve permanecer como é, tudo o que contrarie as verdades oficiais é visto como algo ultrapassado, irremediavelmente perdido num tempo remoto, como antiguidade. Sonhos, utopias, ideologias, teriam falido ad eternum. A História teria chegado ao fim.
O fim, dizemos nós, seria a perpétua continuação do sistema capitalista, na sua fase de globalização monopolista do capital financeiro, em acesa partilha pelos países imperialistas; a continuação das desigualdades à escala planetária, da exploração do homem pelo homem, da injustiça; o militarismo e as guerras para submeter o mais fraco e controlar os recursos naturais etc. A sociedade do mundo globalizado, afirmam os apologistas, do centro, da direita e da social-democracia, é uma realidade tão natural como o sistema solar: as leis da economia, do mercado financeiro, seriam assim por um determinismo de um código genético da sociedade. O «sistema» defende-se. Por muito poderoso que se afirme, tem de propagandear insistentemente a sua invencibilidade, o carácter retrógrado dos seus oponentes e a sua derrota irreversível, sustentar a realidade natural dos seus fundamentos artificiais, apregoar o carácter humanitário da desigualdade sistemática e da exploração desenfreada do mundo e dos povos. Mais do mesmo, a privatização, a privação de direitos sociais, a lógica do lucro sem pudor, aplicada a todos os ramos da vida.
Mas a luta prossegue, o mundo move-se, e nada do que é hoje será amanhã.
Eduardo Prado Coelho faz parte deste coro. Não admira que a sua agressividade verbal se dirija contra o Partido Comunista. O seu discurso é previsível e redundante, com mais ou menos ironia. Na sequência do Congresso do PCP em 2004 fez uma crónica no Público, intitulada «A velha alegria bolchevique» (1/12/04) em que, certamente irritado pela firmeza e solidez das conclusões e escolhas feitas, faz profecias falhadas contra os comunistas, mais evidentes nas seguintes expressões: «suicídio eufórico», «extinção confortável», «já ninguém hoje é marxista-leninista», «já ninguém sabe hoje o que é pensar em termos de marxismo-leninismo». Num tom chocarreiro, de paternalismo elitista, tenta rebaixar o Secretário–Geral do PCP Jerónimo de Sousa, então eleito: «vem directamente do Exército Vermelho sem passar pelos bombeiros de uma terra onde nasceu e cujo nome é impronunciável (algo que oscila entre piscícola e pechisbeque)».
Agora, após a Festa do Avante!, sabedor do sucesso deste grande encontro político e cultural, volta E.P.Coelho a tentar denegrir e estigmatizar o PCP. Em nova crónica do Público (6/09/06) o publicista, depois de ouvir certamente pela rádio o discurso de Jerónimo de Sousa, diz ter ficado de boca aberta («boquiaberto»), espantado por ouvir dizer que o PCP é um partido marxista-leninista, baseado no pensamento de Marx, Engels e Lenine. Exclama: «O que é que isto quer dizer no limiar do século XXI?» E vá de lavrar que «Engels nunca foi grande espingarda», que «Lenine não tem nada a dizer sobre a política do nosso tempo», que os partidos comunistas que ainda persistem só têm de comunistas o nome, que os projectos que apresentam do lado positivo são absolutamente irrealistas, etc. E, de seguida, logo elogia Sócrates como um político notável. O notável escritor a elogiar o seu notável destinatário…
Vamos ao que nos interessa. Quais os créditos do autor? Quais os atributos vertebrais do plumitivo? Se tem agilidade na escrita, tal não significa de imediato que a pessoa seja recta na sua postura de bípede. A prova real não é difícil e tem significado para a análise política.
Em 2004 foi dada à estampa a publicação das cartas editadas pelo Diário de Notícias em que E.P.Coelho tece Diálogos sobre a fé (Editorial Notícias, 2004) com o Cardeal Patriarca de Lisboa, D. José Policarpo. Nesta dura prova fica exposta a alma do cronista muito mais do que nas suas diatribes contra os plebeus e seus representantes.
Qual a sua profissão de fé? Ficamos boquiabertos com a reiterada genuflexão de um intelectual de hábitos laicos, figura oficiosa de «não-crente». A leitura atenta das cartas põe a nu o menino que vai ao confessor. E que confessa? Que «nunca fez proselitismo contra a igreja ou contra os seus representantes na terra» (E no céu? Isso não confessa…). Que nunca se interessou pela teologia, mea culpa, «senão como se ela fosse uma gigantesca máquina de exercitar a inteligência»…Que um avô seu se «converteu». Que ao entrar numa livraria religiosa, «todo um continente de Palavras Escritas (sagradas) lhe eram estranhas», o que «era uma falha insanável sobre a qual constituiu a sua existência». Mon Dieu!
Como que a implorar o perdão ao Sr. Cardeal pelo seu agnosticismo impenitente, E.Coelho desabafa em tom meio resignado: «Não podemos deixar de sentir que há naquela certeza absoluta (da fé) algo que nos suscita alguma inveja. E noutro passo, angustiado (a sério?), «porque é que essa graça não é dada a todos?». Confessado o pequeno pecado está certamente perdoado…
Quando EP.Coelho tece comentários sobre o PCP e os comunistas ou o comunismo, o marxismo ou o marxismo-leninismo, fala grosso, serve-se da pena sem dó nem piedade, sem temor, com raro denodo, a deitar abaixo essas velharias dos anos 40, a ridicularizar esses «atrasados», fora do tempo. Outro coelho aparece neste diálogo melífluo, cheio de bondades, de flexões, de respeitos ao Sr. Cardeal, apesar da discordância substancial, aqui na terra como no céu, num silenciado anacronismo ad seculorum.
A debilidade ideológica e filosófica de EPC fica bem patente nestes diálogos. Enquanto o Sr. Cardeal sustenta com elegância e coerência as suas ideias religiosas nas quais sobressai o fundo ético, o crítico, com tantas credenciais profanas, vai-se abaixo das canetas, articulando um discurso ecléctico, centrado no seu Ego (ou umbigo, se quiserem). Diz: «O que mais me custa em todo o discurso cristão é essa ideia de uma centralidade do sacrifício, isto é, da necessidade de abdicarmos de algo para subirmos um pouco mais (…) aceito mal essa economia em que é preciso sacrificar A para obter B». A pessoa mimada, que não tolera a frustração, que foi bafejada pelos privilégios do destino burguês, de nada se priva, julga em tese o mundo dos outros com o horizonte visual da sua curvatura abdominal. Eis o ideal da ausência de ideal. A vida sans soucis. Tem toda a razão o Sr. Cardeal José Policarpo, como quem adverte o Pinóquio, quando afirma: «Toda a vida vivida com ideal traz mais tarde ou mais cedo a experiência da exigência e do sofrimento.»
EPC considera que há uma crise do que chama «as grandes narrativas», com a consequente erosão do comunismo, do catolicismo, do tomismo e do marxismo. Mas quanto ao comunismo estamos conversados, está excomungado sem apelo nem agravo ao que dizem as suas crónicas no Público. A Igreja ainda se pode salvar desde que siga os seus conselhos e faça um aggiornamento em relação aos costumes, particularmente na esfera sexual: «A Igreja deve estar atenta a esses “sinais” se não pretende ficar cada vez mais isolada do mundo.»
Dizia Marx que toda a crítica começava na crítica da religião. EPC não consegue fundamentar filosoficamente um discurso em que separe a experiência da fé (sem valor de conhecimento, sem valor gnoseológico) do conhecimento científico, fundado na razão e na experimentação. O seu agnosticismo é fruto de uma indecisão, de uma fraqueza, de não querer desagradar de todo, de uma clara hipocrisia. Por momentos faz uma crítica severa sobre o que chama «a tralha figurativa» da religião (a iconografia, os santos, as imagens do inferno e do paraíso, etc.), mas a intenção é depurar a religião, para a tornar mais espiritual, como revela numa tirada de sabor místico: «O problema é quando ela (a tralha) (…) apaga aquilo que deveria ser fundamental: a experiência íntima do desconhecido em nós e fora de nós». Noutro passo diz que «em todos nós, racionalistas agnósticos ou crentes, existe a necessidade de aceitar em determinado momento que “o que é, é”, e não posso saber mais nada, porque fui embater no mistério do ser».
Eis aonde nos levou o pensamento actualizado do grande pensador que diz que Lenine nada representa para hoje, que Engels não é espingarda boa, etc. O atraso de Eduardo Prado Coelho é de mais de um século. Engels no seu livro Ludwig Feuerbach e Marx e Engels nas obras a Sagrada Família e a Ideologia Alemã, e Lenine no Materialismo e Empiriocriticismo há muito que ajustaram contas com todos os idealismos e fideísmos. O Materialismo Dialéctico e Histórico é do nosso tempo, mas muitas cabeças enganam-se na sua datação, preferindo os antigos (renovados) meandros escolásticos e a metafísica do «que é, é. Aspergidos com água benta.